PARA QUE SERVE A CULTURA?

Serve para nos sentirmos humanos nesse território de emoções que transforma o espanto numa lágrima, que nos transfigura com um poema, uma música, uma escultura e nos deixa em silêncio ou em êxtase e, depois, fazemos o caminho de regresso a casa como se vivêssemos numa bolha de beleza. Serve para ter memória e olhar para trás, para ler o desenvolvimento da humanidade e tornar compreensível a racionalidade. Serve para experimentar e desafiar, para protestar e renascer em busca das utopias que nos fazem sonhar para além da sombra dos nossos corpos. Serve para aliviar a dor e o sofrimento, denunciar as atrocidades e os genocídios, vencer os obstáculos e cultivar a fraternidade. Serve para educar as crianças a serem livres e a respeitarem as diferenças como as cores do arco-íris.
Serve para manter o homem vivo e a respirar todas as artes intrínsecas à Cultura. É crer em algo que transporta as pessoas e a sua percepção de finitude. Devolve-nos a identidade e permite a apropriação da realidade esquecida que vive em nós. A sua transmissão faz-nos pensar numa espécie de liberdade que foge aos conceitos pré-estabelecidos. A Cultura através das artes regenera a identidade física e emocional.
Ao estudarmos os gregos e os latinos, onde as Artes e os Deuses habitavam a vida dos homens, percebemos que a história da humanidade é o somatório de diferentes culturas onde o melhor se perpetuou na perenidade do pensamento. Somos o que resistiu às perseguições, à ignorância, à intolerância e a todos os que derrubaram templos e esculturas convencidos que a morte dos símbolos era o princípio das trevas. A Cultura é o que sobrevive depois da terra queimada, o que não espera pela chuva nem pelos milagres. É a voz da consciência que se inquieta contra as injustiças.

Morreu recentemente o actor José Lopes numa tenda entre a solidão e a fome. Todos nos indignámos e sentimos essa morte como a nossa própria vergonha. Vivemos numa sociedade descartável onde não interessa a herança de Genet ou de Molière. Somos, também, o espelho da mediocridade e da falta de respiração quando se trata de apoiar a Cultura. O Ministério da Cultura devia ser a primeira voz a ouvir-se nestas circunstâncias. Depois da morte chegam sempre elogios e hipócritas manifestações de pesar.
Este país, às vezes, parece que não é para os artistas, mas para um punhado de gente que sobe a corda fingindo que lê, que sabe ou que ouviu falar. Somos um país de poetas, de pintores e de outros artistas que gastam o melhor do seu sorriso a dar visibilidade aos que roem a corda da solidariedade e que preferem apoiar os bancos e encherem os bolsos dos que roubam. Os artistas em Portugal vivem no limite da sobrevivência, não têm garantias de coisa nenhuma e o mais provável é viverem os últimos dias de vida na maior pobreza ou irem para a Casa do Artista. Ser artista devia ter uma cláusula especial: morrer jovem. Assim, estavam garantidas algumas “mordomias” de solidão e de privações que visitam os criadores nos derradeiros anos. Há uma responsabilidade colectiva de que o Estado não se pode eximir.

Imaginem não haver escritores, pintores, músicos e outros tipos de expressão? Acho que ninguém quer imaginar, mesmo os que dizem que isso não lhes faz falta. Sem racionalizarem os pais querem que os seus filhos aprendam música, expressão plástica e dramática, que a educação das crianças seja o mais interdisciplinar incluindo as Artes. A história da humanidade contar-se-ia pelas guerras e suas batalhas se não fosse a dimensão artística. Quando se visita uma catedral estão lá quase todas as Artes para gáudio do espírito humano. A beleza é um pouco como o amor que encontramos no outro, mais o que lhe acrescentamos, é o condicionamento do conhecimento que a memória cristalizou, mais a sugestão que levamos nos sentidos.
Para que serve a Cultura? Para que a liberdade esteja sempre em expansão e subverta o olhar de quem pensa que uma parede deve ocultar bibliotecas; para exercitarmos a demonstração de teoremas que alimentam falsas definições e esperanças a quem faz a diferença; para sermos mais felizes e estimularmos a saudade que não esquece o que ainda não nasceu. A Cultura é a voz mais lírica da Filosofia, o coro grego que interpela a existência e desafia os deuses.

António Vilhena – escritor