“SE BEM ME LEMBRO…” – EVOCAR (HOJE E SEMPRE) VITORINO NEMÉSIO

Sansão Coelho em 21 fevereiro 2015
__________________________________
Neste dia (fevereiro,21), em 1978, era sepultado ao som do Aleluia, conforme seu desejo, no Cemitério de Santo António dos Olivais, em Coimbra, sua terra adotiva, o poeta, ensaísta, comunicador, escritor, leitor e docente em várias universidades estrangeiras, Professor Doutor VITORINO NEMÉSIO. Natural dos Açores, Nemésio veio para Coimbra para completar o último ciclo do liceu e ingressar na Faculdade de Direito. Mais tarde trocou Direito por Letras
e acabou por se licenciar na universidade lisboeta onde também foi docente. Participou em várias revistas culturais e académicas do seu tempo fundando umas e dirigindo outras, numa enorme azáfama intelectual.
Após sessões realizadas neste fim-de-semana no Café Santa Cruz, hoje, domingo ao meio-dia, no Cemitério dos Olivais, aqui em Coimbra, VITORINO NEMÉSIO é lembrado por amigos e admiradores. Para além de uma forte aura intelectual, VITORINO NEMÉSIO ficou conhecido do grande público por apresentar na RTP um programa de conversa informal com o título “SE BEM ME LEMBRO…”
Da sua obra destacamos hoje três poemas que permitem reencontrar a dimensão poética deste açoriano “conimbricense” que residiu no Tovim, durante vários anos, tendo casado nesta cidade onde, aliás, constituiu família.

Tenho uma Saudade tão Braba

Tenho uma saudade tão braba
Da ilha onde já não moro,
Que em velho só bebo a baba
Do pouco pranto que choro.

Os meus parentes, com dó,
Bem que me querem levar,
Mas talvez que nem meu pó
Mereça a Deus lá ficar.

Enfim, só Nosso Senhor
Há-de decidir se posso
Morrer lá com esta dor,
A meio de um Padre Nosso.

Quando se diz «Seja feita»
Eu sentirei na garganta
A mão da Morte, direita
A este peito, que ainda canta.

Vitorino Nemésio, in “Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga”

RETRATO

Cruel como os Assírios,
Lânguido como os Persas,
Entre estrelas e círios
Cristão só nas conversas.

Árabe no sossego,
Africano no ardor;
No corpo, Grego, Grego!
Homem seja onde for.

Romano na ambição,
Oriental no ardil,
Latino na paixão,
Europeu por subtil:

Homem sou, homem só
(Pascal: «nem anjo nem bruto»):
Cristãmente, do pó
Me levanto impoluto.

Vitorino Nemésio, Nem Toda a Noite a Vida, Edições Ática, 1952

Pedra de Canto

Ainda terás alento e pedra de canto,
Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira,
Para cantar em sílabas ásperas o canto,
De rima em -anto, o pranto,
O amor, o apego, o sossego, a rima interna
Das almas calmas, isto e aquilo, o canto
Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro,
O estupro de outrora, a triste vida dela, o canto,
Buraco onde te metes, duplamente: com falo,
Falas, fá-la chorar e ganir, com falo o canto
No buraco de grilo onde anoiteces,
No buraco de falso eremita onde conheces
Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto
De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares
Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia,
Canteiro porque o falo a julga flores, o canto
Áspero do canteiro de pedra e sémen que tu és
(No buraco do falo falaste),
Tu, falazão de amor, que a amas e conheces.
Amas a quem? Conheces quem? Pobre Hipocrene,
Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,

Embora isso em sangue dessa pobre alma em ferida:
A dela, a tua, cadela a tua pura e fiel no canto
De lama e amor como não há no charco em torno,
Maravilhoso canto só de soprares na ponta a um corno
E logo a sílaba e o inferno te obedecem
E as dores íntimas dela nas tuas falas se conhecem,
Sua íntima vergonha inconfessada desponta,
Passiflora penada, pequenina vulva triste
Em teu sémen sarada e já livre de afronta:
O canto em pedra e voz, psicóide e bem vibrado,
Límpido como vidro a altas horas lavado,
Como o galo de bronze pela dor acordado,
No amor e na morte alevantado,
Da trampa mentirosa resgatado,
Como Dante o lavrou em pedra de Florença
E Deus to deu de amor por ela no atoleiro?
Flor menina de orvalho em amor verdadeiro?

Ainda terás amor e pedra de canto,
Fé nela e sua dor de arrependida e enganada,
Ou, enfim, amor a fogo dado e perdão puro…
Eu quero lá saber! Amor de Deus no canto
De misericórdia e paz, mesmo para os violentos
Da violada violeta, a breve miosótis
Ao canto unida e em tuas lágrimas orvalhada?
Cala-te e humilha-te como ela,
Que é maior do que tu no canto
E a esta hora só bebe talvez água salgada,
Oh poeta de água doce!

Mas, antes de calar espada e voz, responde:
Ainda terás alento e pedra de canto
Para cantar estas coisas,
Encantar outra vez a donzela roubada ou nina morta,
Enfim, o teu amor?
Dize lá, sem-vergonha,
Homem singelo:
Pois se nisto me mentes nunca mais a verás.
(Quem fala?)

Vitorino Nemésio, in “Obras Completas”

Interatividade: sansaocoelho@coimbracanal.com